Herta Müller e as feridas profundas das ditaduras
2.8.16**Texto publicado na newsletter Bibliotecas do Brasil Inbox #57 em 08/03/2016. Inscreva-se para receber gratuitamente em seu email. Deixamos essa edição em aberto pois ela discute as feridas profundas que ditaduras causam nas populações que oprimem e mais especificamente às mulheres:
Escolhi a escritora Herta Muller para partilhar com você nesse Dia Internacional de Luta das Mulheres. Quando li as primeiras páginas de um livro da Herta Muller no inverno do ano passado, percebi na atmosfera de sua escrita que tudo é tão íntimo e ao mesmo tempo tudo soa como uma grande novidade, como naquelas situações em que temos a sensação de que já conhecemos há anos uma pessoa que acabamos de conhecer.
Herta escreve em forma de memórias. Seu livro ‘Sempre a mesma neve sempre o mesmo tio’ é como um diário literário de momentos vividos por ela e por seus amigos durante a ditadura de Nicolae Ceauşescu na Romênia durante os anos 1980. Ela pensa muito sobre o significado das palavras e esse exercício de busca pelo significado leva a pessoa que lê seus livros a voltar seus olhos e seu pensamento para um mundo que recentemente vivemos aqui no Brasil, mas insistimos em esquecer: o abominável período da ditadura militar.
Herta trabalhava como tradutora em uma fábrica de peças de engenharia e foi abordada pela Securitate, a polícia secreta do regime comunista, para colaborar com eles contra a sua vontade como informante, delatando colegas de trabalho. Em seu livro ela descreve como a recusa em cooperar com a Securitate foi lhe causando cada vez mais problemas, e como a cada dia eles foram tirando sua dignidade no ambiente de trabalho, exterminando suas relações pessoais, e transformando sua vida em um inferno psicológico e físico, desumano e impossível de suportar.
Esse livro me fez pensar na necessidade de cada vez mais lermos livros e assistirmos documentários sobre como foi o período do regime militar no Brasil, identificar e refletir sobre os clichês repetidos à exaustão em salas de aula, nos programas de TV, nos jornais, dentro das igrejas, nas redes sociais, nas conversas, sendo um deles bastante comum de ouvir ao longo do dia, o incentivo ao linchamento e ao massacre de seres humanos: ‘bandido bom é bandido morto’.
Herta fala sobre perdas. De sua dignidade no emprego. Sobre como era xingada e humilhada diariamente pelos homens da Securitate. Sobre como eles chegavam, quebravam todos os objetos da sua sala e a colocavam para fora. Até que perdeu sua sala de trabalho. Teve que trabalhar sentada nas escadas da fábrica. Começou a ser espancada por eles na saída do trabalho. Ela fala como é ter a casa e os telefones grampeados com escutas, como é ter as palavras distorcidas, ser caluniada e jogada contra colegas de trabalho, ser obrigada a assinar documentos sem ler. Ela nos conta sobre como é receber ameaças constantes de morte - de ser jogada em um rio. Sobre como é ser levada para um campo de trabalhos forçados. Como é ir para o exílio com a mãe idosa. Herta nos conta como é ter um amigo querido assassinado, mas sua morte é transformada em suicídio - como a de Vladimir Herzog.
Depois de ler todas essas situações de opressão, de autoritarismo, de extermínio da liberdade, é assustador que um número muito maior do que podemos imaginar de pessoas simpatizam com a ideia de um governo militar, falam abertamente sobre como em seu entendimento deturpado a ditadura foi o melhor período que Brasil teve, fazem propaganda nas redes sociais e defendem em público sem pudores a volta da ditadura.
Precisamos tornar as palavras de mulheres como Herta Muller mais lidas e melhor assimiladas. Seus escritos são um misto de memória e filosofia, ao mesmo tempo que abordam temas pesados como ditadura, opressão e tortura. Suas linhas nos levam à mais profunda reflexão não só do mundo, mas também de nossas próprias vidas. A escrita de Herta é linda e envolvente, é encantadora e jorra uma beleza literária profunda em quem a lê. Durante a leitura eu pensei nas mulheres que passaram pelo regime de ditadura militar brasileiro. As que foram espancadas, torturadas e mortas. As que sobreviveram. Quero conhecê-las, ouvi-las, partilhar suas palavras. Se você conhece algum livro ou documentário com esses temas, partilhe comigo, eu gostaria de conhecer e também gostaria de trazê-las para partilhar com mais pessoas aqui no blog.
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Arte: Juliano Rocha
Foto: Lesekreis
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