Viagens de memória - Miró em São Paulo
24.8.15Eu gosto de contar como foram as viagens com uma certa distância, gosto de tê-las como resquícios de memórias que se entremeiam e se misturam com as emoções que despertam em mim. Não sou fã de um relato científico de algo que me foi emocionalmente forte e que merece ser descrito com toda a bagagem emocional que me trouxe.
Por isso deixei os meses passarem e agora começo a relatar como foi nossa última viagem para São Paulo no mês de maio de 2015 (talvez entrem memórias de nossa outra viagem para SP no final de 2014). Seguem minhas memórias da exposição Joan Miró - A Força da Matéria no Instituto Tomie Ohtake:
O Miró é um de meus três pais no mundo da arte, que são: Jackson Pollock, Vincent van Gogh e Joan Miró. Esses três gênios foram aqueles que em algum momento da minha aceitação de ser um artista - eu tive que aceitar a ideia e lutar contra toda a programação incutida em mim de que ser artista não era um meio de vida - e continuam a me influenciar mesmo depois de uns 15 anos desde nosso primeiro contato.
As obras do Miró falavam comigo de um jeito especial e os símbolos que eu não compreendia, mas que meu coração saltava forte dentro do peito ao observá-los em fascículos de arte empoeirados. Meu coração ainda pulsa forte ao ver seus trabalhos, só que agora possui uma companhia em sua excitação, meu cérebro. Gosto de ler sobre arte, sua história, os artistas que criam algo novo diariamente, enfrentando dificuldades tremendas emocionais e materiais.
Eu e a Dani nos preparamos para visitar a exposição do Miró no dia seguinte à nossa chegada. Fomos de manhã em direção ao Instituto Tomie Ohtake, que já conhecíamos de nossa visita no final de 2014 quando apreciamos a enorme exposição do Salvador Dalí. Ao sairmos do metrô no Largo do Batata encontramos uma feira de produtos orgânicos (sempre que podemos comemos alimentos orgânicos, o que para nós não é muito fácil, pois não existe feira de orgânicos na periferia de Curitiba). Após olharmos os produtos cheirosos e coloridos da feira fomos almoçar em uma lanchonete simpatissíssima que conhecemos na outra viagem, a Santo Suco Lancheteria com seus sucos de frutas naturais e pratos feitos com opções para vegetarianos.
Bem alimentados e caminhando lentamente pelo bairro de Pinheiros chegamos ao Instituto Tomie Ohtake, quase sem filas entramos na exposição e finalmente mergulhei no mundo de Miró. Já tinha visto pessoalmente uma ou outra obra dele, quando ocasionais exposições trouxeram suas gravuras e desenhos para Curitiba. Mas agora era só o mestre catalão Joan Miró e eu durante a tarde inteira.
Logo na entrada bato de frente com os dois olhos que perscrutam a alma de quem os encara em uma foto grande do Miró, observando quem entra para saborear suas criações. A arte é algo tão incrível que me permite sentir o êxtase em dois momentos bem distintos: quando crio e consigo colocar para fora o mundo que reside em minha alma na mídia que estiver disponível e quando paro em frente a uma obra de arte para apreciá-la. E foi este prazer de estar em meio a uma avalanche de sensações que senti quando parei em frente a primeira obra exposta. Pela primeira vez via uma pintura do mestre ao vivo.
Nesse exato instante me lembro porque amo tanto Miró, as linhas bem definidas que possuem a precisão dos gravuristas japoneses e as cores fortes, quase sempre sem se misturarem que trazem toda a ambientação e força guturais de seus símbolos à vida. Eu fico paralisado enquanto aqueles apressados em ver a exposição inteira antes de dar a hora do estacionamento passam voando atrás de mim e ao meu lado. Os minutos passam e ainda estou na primeira obra, tentando me refazer do impacto e analisando todas as minúcias de sua técnica e discurso.
Lá no começo do blog Bibliotecas do Brasil eu fiz um texto sobre o Miró no qual conto um pouco da vida dele, bem como do seu espaço de trabalho mais no final de sua carreira na cidade de Barcelona. Confira um trecho desse texto que ainda é válido para compreender Joan e sua obra:
É um final de tarde laranja em Mont-roig del Camp e Miró está com febre tifóide, com a cabeça queimando e no meio de um colapso mental. Obrigado a ser um contador em uma farmácia pelo pai, sentiu-se violado em aprisionar seus impulsos artísticos e cores primárias presos em livros pardos com dados insignificantes.
Na fazenda da família em Mont-roig, no interior da Catalunha, deprimido, suando de febre o então jovem de 18 anos chegou a uma conclusão: ou viro artista ou é melhor deixar esta febre me levar. Contra os desejos do pai inscreveu-se na escola de Francisco Gali, onde conheceu novas técnicas de pintura, apesar de não conseguir realizar desenhos acadêmicos perfeitos, tinha um controle de cores absurdo.
Lembro de que ao pesquisar sua biografia para o texto me identifiquei com o momento no qual ele se aceitou como artista, venho de uma família que o único objetivo na vida é tornar-se funcionário público ou de alguma estatal com um salário para “viver bem” e “sem preocupações”. Esse pensamento pequeno me aprisionou tanto quanto Miró e como ele também tive o meu colapso mental até me aceitar como artista e me rebelar contra essa predestinação.
A exposição era bem abrangente com muitas pinturas, aquarelas e esculturas que deixavam claro como a ânsia de criação do Joan não possuía limites, parecia que ao ver um papel de pão ele via em suas dobras o começo de mais um desenho ou pintura. Com isso tinha várias obras feitas sobre embalagens ou sacos de algodão cru, cujas texturas eram exploradas por Miró para aumentar o efeito de seus traços.
Ao contrário da exposição do Dalí, que estava muito lotada, não permitindo uma apreciação devida das obras, conseguimos passear por um recorte do mundo criativo do artista Catalão com calma e nos permitindo perscrutar os detalhes. Ficava calculando como havia feito tal traço, qual foi a mistura de água e tinta para chegar a outa transparência e assim por diante. Exposições são também como aulas individuais para artistas que aprendem diretamente dos mestres (muitas vezes mortos há séculos) novas ou melhores formas de se exprimir de forma plástica.
Ao final da tarde, quando saímos do Instituto Tomie Ohtake me senti mais próximo de seu mundo e com a certeza de haver conversado com uma alma que possuía muitos pontos em comum. É delicioso e alentador encontrar pessoas que mesmo vivendo em outro país e de termos dividido o mundo durante apenas dois anos possuem as mesmas indagações e sensibilidades que você. São esses encontros com outros criadores que também possuíam as dificuldades em possuir sensibilidade excessiva com o mundo que me dão um empurrão de seguir em frente, enfrentando também as dificuldades de uma vida alternativa em que meu trabalho é meu lazer e que não possui hora para começar ou acabar.
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