Tristes detalhes do interior da Casa Kozák
14.5.14
Ferida antiga e aberta no coração do Uberaba, o abandono da Casa Kozák abala o sentimento de continuidade e de autoestima da Vila São Paulo. Desde 2011 as experiências literárias e os livros não são mais compartilhados na biblioteca pública do bairro. Leia o artigo "Atualização sobre a situação da Casa Kozák, biblioteca abandonada em Curitiba".
Estamos vivendo uma época em que as pessoas estão cada vez mais interessadas em leitura, estão se movimentando e se reunindo pelos livros e pelas bibliotecas. Há dois anos mapeamos no blog Bibliotecas do Brasil, iniciativas dos mais diversos formatos e tipos de coordenação, desde ações totalmente voluntárias até bibliotecas públicas atuantes, são projetos em sua grande maioria voltados para pessoas que por diversos motivos estão distantes dos livros e que através destas ações descobrem a leitura ou voltam a se conectar com ela. Muitos desses projetos e bibliotecas inclusive já revisitamos em novos artigos, e eles continuam fortalecidos e atuantes.
Vista traseira da Biblioteca Casa Kozák arrombada e a Rural Willys usada por Vladimir Kozák em suas expedições às tribos indígenas em um estado lastimável de ferrugem sem nenhuma preservação.
Fizemos contato com pessoas do Brasil inteiro nesse período, temos registrado essas experiências literárias em diferentes regiões do território nacional, e algumas de outras partes do mundo (Portugal, África do Sul, Estados Unidos) como modelos que nos servem de inspiração e que são passíveis de adaptação para a realidade de muitas comunidades, como é o caso das encantadoras minibibliotecas, só para citar um exemplo. Os envolvidos são mediadores de leitura, contadores de histórias, professores, voluntários, profissionais autônomos, pessoas das mais diversas áreas profissionais, associações de moradores, grupos solidários, empresas privadas, comerciantes e desempregados que têm tirado dinheiro do próprio bolso para colaborar ativamente com bibliotecas comunitárias, projetos de incentivo à leitura e ações de distribuição e circulação de livros, para que o maior número de leitores tenha acesso facilitado e o alcance dos livros seja ampliado.
Essas ações criativas nos mostram que é possível no Brasil contribuirmos para a formação de mais leitores, e que projetos desde os mais simples, voluntários e espontâneos, até os mais elaborados, comprovam na prática que a leitura ocupa um papel fundamental na transformação de indivíduos, grupos de pessoas e de comunidades inteiras.
Em meio ao espírito desse tempo que estamos vivendo, a Biblioteca da Casa Kozák situa-se como uma contradição enquanto agoniza. No dia 1º de Setembro de 2014 ela completará seu terceiro ano desativada. É difícil para aqueles que passaram a infância desfrutando da biblioteca ou conviveram com ela em seus períodos de intensa atividade encarar a realidade de que depois de tantos anos, os livros foram retirados do acervo, a porta foi trancada e a Casa Kozák foi deixada para trás, desprotegida, largada à sua própria sorte.
Rural Willys de Vladimir Kozák parece irrecuperável
Quem foi Vladimir Kozák
Passaporte de Vladimir Kozák exposto no Museu Paranaense na mostra "Vladimir Kozák, o olhar de um viajante"
Vladimir Kozák nasceu em 19 de abril de 1897 na cidadezinha Bystřice pod Hostýnem, na República Checa. Filho de um serralheiro e uma bordadeira, aprendeu inglês e português ainda em sua terra natal através de cursos gratuitos, formando-se na Universidade de Tecnologia de Brno, cidade amplamente universitária da República Checa.
Chegou ao Brasil em 1924 e trabalhou como engenheiro elétrico e logo após para a Universidade Federal do Paraná. Kozák dedicou sua vida a pesquisar as tribos indígenas brasileiras, realizando inúmeras expedições para o meio da floresta. Tornou-se um dos primeiros cineastas do mundo que filmou os índios locais. Seus primeiros documentários foram feitos ainda na década de 1930.
Por meio de escambo com os indígenas conseguiu coletar em torno de 40 mil objetos, inclusive de tribos hoje em dia extintas, acumulando um rico testemunho da história e dos costumes dos primeiros habitantes das Américas. Como parte de suas pesquisas realizou também desenhos e pinturas dos índios, de seus artefatos e do local onde viviam. Suas pesquisas, desenhos e filmes são reconhecidos por estudiosos do Brasil, Canadá e França, porém em seu país natal a República Checa ele ainda é pouco conhecido. A casa de Kozák construída em estilo tcheco pelo próprio pesquisador, tornou-se um centro cultural e biblioteca em 1988. Vladimir Kozák morreu em 1979 sem deixar herdeiros e foi sepultado ao lado de sua irmã, a artista plástica Karla, em Curitiba.
Objetos deixados para trás
Objetos e móveis foram deixados para trás no interior da Casa Kozák, são peças que remetem à diferentes épocas do imóvel. Ainda estão em seu interior os materiais utilizados no dia a dia da biblioteca (potes de tinta, pincéis, quadros negros), móveis (um deles chamou mais a atenção, o balcão com uma vitrine com ilustrações deixadas em seu interior) assim como objetos ligados à memória de Vladimir Kozák que poderiam ter sido reutilizados em outros espaços culturais da cidade, como a placa em homenagem à visita dos índios Xetá à Casa e o seu carro, uma Rural Willys completamente enferrujada e sem proteção no quintal dos fundos. “É um desrespeito incrível à memória dos índios Xetá que foram visitar a casa de Vladimir Kozák. A placa foi abandonada como se eles não significassem nada”, comentou Roberto Carneiro, aposentado que fotografou o interior da Casa Kozák e cedeu as fotos para o blog Bibliotecas do Brasil.
Os objetos e peças estão presentes e não precisaram sobreviver intactos para fornecer uma quantidade enorme de informações a quem se depara com a cena. Ao juntarmos as informações destes fragmentos eles nos contam a história da Casa Kozák, nos dizem muito sobre a vida da biblioteca através das fotos arrancadas de um álbum largadas no chão, dos móveis, objetos, peças e materiais utilizados nas oficinas e rodas de leitura. Esses sinais deixados para trás nos contam muito mais sobre a vida passada da biblioteca e seus frequentadores do que o horrível estado atual de conservação com as primeiras ações de vandalismo.
O busto de um frei capuchinho e as tintas ainda molhadas das recentes ações de vandalismo na Casa Kozák. Abaixo o balcão com vitrine tem ilustrações deixadas para trás em seu interior.
O estado da casa, por Roberto Carneiro, que fotografou o interior do imóvel:
“A fiação elétrica foi toda arrancada e está desativada. O assoalho está perfeito e no telhado não vi sinais de infiltração em nenhuma das peças. Não vi danos causados por infiltrações seja de chuva ou canalização defeituosa. O carro do Kozák uma Rural Willys virou sucata, parece não ter recuperação. A Casa Kozák está no meio do mato, os vestígios da invasão são recentes, já virou um mocó e o pior pode acontecer em poucos dias. Vi algumas roupas e cobertas usadas recentemente. Vestígios de fogo alertam para o perigo de incêndio. Já tem chinelo, uma mala, uma garrafa de bebida. O fogão de chapa está sendo utilizado pelas pessoas que invadiram a casa. Todas as janelas estavam abertas. A vedação de acesso ao interior da casa se faz urgente”.
Vista da porta de entrada arrombada da Biblioteca da Casa Kozák
Vestígios de invasão
Uma biblioteca é uma conquista da comunidade e ela precisa ser preservada por todos. É preciso preservar não só os livros mas também os objetos, os móveis e a casa.
No segundo andar a casa está infestada de pombas e o chão está tomado de fezes das aves.
No segundo andar a peça única onde aconteciam as rodas de leituras e contações de história, além de servir como local de leitura e espaço para que estudantes fizessem pesquisas. Nós tivemos a oportunidade uma única vez em 2011 de usar esse espaço para ler, e é com imensa tristeza e revolta que mostramos ela nesse estado. E é bom lembrar que a Casa da Leitura Franco Giglio também está em processo de depredação no Campina do Siqueira, bairro de Curitiba.
Vidros quebrados na porta
Roberto Carneiro nos contou após mostrar as fotos: “Não sou místico, mas você quer saber como me senti lá dentro? Muito bem, a Casa Kozák tem uma vibração boa, é toda bem clara, grande, tem claraboias, é bem iluminada, é um local muito bonito, mas é uma tristeza muito grande o descaso que ela está enfrentando. Ela pode deixar de existir a qualquer momento, pode ser hoje ou amanhã, a história dela está sendo enterrada”.
Ações
Abrimos um protocolo na Central 156 (antes de ficarmos sabendo que a Casa Kozák já tinha sido invadida e transformada em um mocó) que teve a seguinte resposta da Fundação Cultural de Curitiba, órgão responsável pela casa: "A FCC informa que está em trâmite o convênio de administração do imóvel com a Secretaria de Cultura do Estado. Paralelo a questão, o gabinete da FCC está em contato com a Guarda Municipal para verificação de possível invasão, solicitação de intensificação de rondas no local e junto ao distrito regional roçada da área".ATUALIZAÇÃO EM 19/05/2014 - 17h50
Durante a semana após a publicação desse post o terreno da Casa Kozák passou por uma roçada. Todo o mato da frente, das laterais e dos fundos foi retirado, mas o principal não foi solucionado: a Biblioteca da Casa Kozák continua com todas as portas e janelas abertas servindo de mocó para consumo de drogas e esconderijo. A situação continua a mesma, só que sem mato.
O terreno passou por uma roçada, mas as portas e janelas ficaram desse jeito
A placa da Casa de Cultura Vladimir Kozák é de abril de 1989.
Objetos como o quadro da poetisa curitibana Helena Kolody marcam presença entre as memórias perdidas e deixadas para trás na Biblioteca da Casa Kozák.
O mato foi cortado mas a Biblioteca da Casa Kozák continua com as portas e janelas escancaradas. A Rural Willys usada nas expedições do pesquisador e etnólogo Vladimir Kozák continua sem nenhuma proteção.
É importante que todos nós curitibanos nos conscientizemos de que a Biblioteca da Casa Kozák faz parte do patrimônio cultural de Curitiba, com a grande incumbência de ser uma biblioteca localizada em um bairro periférico, distante do Centro e dos demais equipamentos culturais da cidade, bairro onde não há nenhuma biblioteca aberta ao público com as mesmas atividades que eram oferecidas na Casa Kozák. É muito grave que esse patrimônio cultural seja abandonado, relegado à depredação e ao esquecimento, e que gestão após gestão sua situação cada vez fique mais degradada.
O mato se foi mas as janelas ficaram abertas evidenciando a utilização da casa como um local para consumo de drogas no bairro Uberaba.
A biblioteca poderia estar funcionando aberta à comunidade, mas depois de quase três anos de abandono só uma infestação de pombas pode se beneficiar desse espaço cultural.
Texto de Daniele Carneiro e Juliano Rocha
Bibliotecas do Brasil: contato@bibliotecasdobrasil.com
Pesquisa: Juliano Rocha
Fotos do passaporte e de Vladimir Kozák com os índios: Daniele Carneiro
Arte: Juliano Rocha
As fotos do interior da casa foram concedidas ao blog Bibliotecas do Brasil por Roberto Carneiro
* Uso sob licença Creative Commons.
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